sexta-feira, 7 de março de 2014

Semana de carnaval

Fiquei a semana toda desconectada para não me achar a única pessoa fora do carnaval no mundo. Não adiantou muito. O carnaval é uma festa tão intensa que mesmo que você não abra as portas para ele, ele invade sua janela aos berros. Certo que não vi fotos dos amigos e nem liguei a tv. Mas quando eu ia dormir, só escutava as músicas e as risadas num outro mundo e tudo isso só serviu para aumentar a minha solidão.
Eu escolhi ficar longe do Carnaval – o que aliás tem se tornado comum, e eu era rata dos blocos e dos becos do samba, do maracatu e das marchinhas – com um propósito. E estava bem tranquila, como no ano passado e no anterior, quando fiquei com minha vó e depois tanto barulho perdeu seu sentido, com a decadência da festa que eu conheci anos atrás. Mas dias antes do feriado, o meu vazio se intensificou de uma forma tão grotesca e ficar sem as notícias carnavalescas no final apenas intensificou meu sentimento de desconexão com o mundo. Foi tão de repente – eu estava segura e tranquila, e aí de repente senti que perdi todos os laços da minha vida e no final tive essa certeza – bem no meio da festa, e eu sentia como se um bloco inteiro passasse em cima de mim sem que eu conseguisse respirar.
Engraçado como essas coisas acontecem sem aviso. Não estava preparada para enfrentar esse vazio porque ele não deu sinal como geralmente acontece, uma melancolia que surge e vai progredindo. Simplesmente apareceu. E trouxe com ele todas as escolhas que fiz na vida – e todas aparentemente erradas. O vazio só apontava o dedo e gargalhava da minha ignorância, da minha inocência e tudo perdeu seu propósito. Tudo. E aí eu me tranquei e chorei por um tempo impossível de ser contado, até que pedi uma trégua porque eu tinha virado um nada. A trégua durou minutos mas acabou e tudo voltou de novo e só foi embora depois que gritei, eu e minha mãe gritamos, porque eu estava quase morrendo em mim. Depois amanheci.
Quase todo mundo que conheço hoje faz terapia e todos me falam que processos de autoconhecimentos são dolorosos e podem ser fatais, mas sobreviva a eles porque são necessários. Esse não teve nenhuma orientação, e nenhum acompanhamento. Talvez por isso tenha sido tão bruto. Dizem também que depois do Carnaval os Espíritos que foram soltos retornam pras suas casas e é uma época muito delicada porque eles podem querer brincar com você antes de partir. Acho que quiseram me ferir mesmo e foram embora satisfeitos porque me massacraram.
 Mas, ironicamente, quando amanheci, a primeira memória que veio foi do olhar de um esquecido. Eu não lembrava mais dele, parece que foi em outra vida. Eu odiava a faculdade de Direito e pensava em com largá-la, no quarto período, quando visitei pela primeira vez uma prisão. Eu me deparei com  esse preso com um olhar duro. Fizemos algumas perguntas mas ao contrário da maioria, ele não queria falar, não parecia querer sair dali. Como não queria sair? Só nos olhava em silêncio, até que focou em mim. Eu tremi, mas não de medo; tremi porque por segundos eu também me senti um nada. Foi quando comecei meu discurso com viés criminológico e abandonei tantos ideais burgueses, passei a parar de ocultar problemas, foi quando passei a ter um olhar crítico da realidade. Eu saí daquele lugar tão transtornada que decidi pelo caminho mais difícil – e decidi que a única maneira de realmente merecer o mundo seria fazendo o possível pelos abandonados do sistema. Existem outros caminhos menos pesados, mas na época parecia que apenas esse era eficaz. Um erro talvez, e se foi é mais um pra minha coleção. Mas foi uma escolha sincera.
Na vida que acabei construindo, nunca desenvolvi nenhum talento real. Nunca fui a inteligente, a esperta, a criativa, a bonita, a iluminada. Sempre lutei contra a dislexia, contra piadinhas aparentemente inocentes, xingamentos e cheguei por um tempo a construir uma barreira onde fingia que tudo era exagero porque era mais fácil esconder. Hoje quebrei muitas pedras, mas continuo sendo a típica pessoa mediana. Só tenho de especial o que todos nós temos, um amor, que é gigantesco, que é louco pelo mundo, pelos presentes da vida, e ele vai ter que ser o suficiente para que acreditem em mim porque não tenho nada além. Acho que justamente porque nunca me destaquei, sempre acreditei que não é preciso nenhum plus para ser feliz. Mas é fundamental ter alguém que acredite e que te ajuda a não ser engolido por um sistema que só privilegia os talentosos. E isso é o que eu tenho pra oferecer pro mundo e no final compensa muito, mesmo sem aplausos ou gritos de uma multidão. É quando me torno de verdade a pessoa mais feliz do mundo.
Talvez por tudo isso, depois que lembrei do que tinha esquecido, eu comecei a rir. Gargalhar na verdade, loucamente, ainda deitada na cama, no chão. Levantei, olhei para o sol e agradeci pelo meu carnaval. Engraçado como às vezes é necessário voltar pra casa porque sobra tempo pra entender todo o período que você passou fora, pra pensar em tudo que não dava tempo. Ainda dói e ainda não voltei a sentir os laços apertados, ainda me sinto com frágeis conexões. Mas minha base é forte, e o meu santo ainda mais. Faço bagunças, me atrapalho, mas não tenho preguiça para ajudar um igual a se levantar. E é assim que um dia vou acertar mais a tecla e talvez no ano que vem eu esteja mais conectada para voltar a pular o Carnaval e acreditando realmente na alegria dele. 

Um comentário:

  1. Que texto lindo e intenso. Vejo toda essa verdade e, como sempre, passamos por processos muito parecidos.

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