Fiquei a semana toda desconectada para não me achar a única pessoa fora
do carnaval no mundo. Não adiantou muito. O carnaval é uma festa tão intensa
que mesmo que você não abra as portas para ele, ele invade sua janela aos
berros. Certo que não vi fotos dos amigos e nem liguei a tv. Mas quando eu ia dormir, só escutava as
músicas e as risadas num outro mundo e tudo isso só serviu para aumentar a
minha solidão.
Eu escolhi ficar longe do Carnaval – o que aliás tem se tornado comum, e
eu era rata dos blocos e dos becos do samba, do maracatu e das marchinhas – com
um propósito. E estava bem tranquila, como no ano passado e no anterior, quando
fiquei com minha vó e depois tanto barulho perdeu seu sentido, com a decadência
da festa que eu conheci anos atrás. Mas dias antes do feriado, o meu vazio se
intensificou de uma forma tão grotesca e ficar sem as notícias carnavalescas no
final apenas intensificou meu sentimento de desconexão com o mundo. Foi tão de
repente – eu estava segura e tranquila, e aí de repente senti que perdi todos
os laços da minha vida e no final tive essa certeza – bem no meio da festa, e
eu sentia como se um bloco inteiro passasse em cima de mim sem que eu
conseguisse respirar.
Engraçado como essas coisas acontecem sem aviso. Não estava preparada
para enfrentar esse vazio porque ele não deu sinal como geralmente acontece,
uma melancolia que surge e vai progredindo. Simplesmente apareceu. E trouxe com
ele todas as escolhas que fiz na vida – e todas aparentemente erradas. O vazio
só apontava o dedo e gargalhava da minha ignorância, da minha inocência e tudo
perdeu seu propósito. Tudo. E aí eu me tranquei e chorei por um tempo
impossível de ser contado, até que pedi uma trégua porque eu tinha virado um
nada. A trégua durou minutos mas acabou e tudo voltou de novo e só foi embora
depois que gritei, eu e minha mãe gritamos, porque eu estava quase morrendo em
mim. Depois amanheci.
Quase todo mundo que conheço hoje faz terapia e todos me falam que
processos de autoconhecimentos são dolorosos e podem ser fatais, mas sobreviva
a eles porque são necessários. Esse não teve nenhuma orientação, e nenhum
acompanhamento. Talvez por isso tenha sido tão bruto. Dizem também que depois
do Carnaval os Espíritos que foram soltos retornam pras suas casas e é uma
época muito delicada porque eles podem querer brincar com você antes de partir.
Acho que quiseram me ferir mesmo e foram embora satisfeitos porque me
massacraram.
Mas, ironicamente, quando
amanheci, a primeira memória que veio foi do olhar de um esquecido. Eu não
lembrava mais dele, parece que foi em outra vida. Eu odiava a faculdade de
Direito e pensava em com largá-la, no quarto período, quando visitei pela
primeira vez uma prisão. Eu me deparei com
esse preso com um olhar duro. Fizemos algumas perguntas mas ao contrário
da maioria, ele não queria falar, não parecia querer sair dali. Como não queria sair? Só nos olhava em silêncio, até que focou em mim. Eu tremi, mas não de medo;
tremi porque por segundos eu também me senti um nada. Foi quando comecei meu
discurso com viés criminológico e abandonei tantos ideais burgueses, passei a
parar de ocultar problemas, foi quando passei a ter um olhar crítico da
realidade. Eu saí daquele lugar tão transtornada que decidi pelo caminho mais
difícil – e decidi que a única maneira de realmente merecer o mundo seria
fazendo o possível pelos abandonados do sistema. Existem outros caminhos menos
pesados, mas na época parecia que apenas esse era eficaz. Um erro talvez, e se
foi é mais um pra minha coleção. Mas foi uma escolha sincera.
Na vida que acabei construindo, nunca desenvolvi nenhum talento real.
Nunca fui a inteligente, a esperta, a criativa, a bonita, a iluminada. Sempre
lutei contra a dislexia, contra piadinhas aparentemente inocentes, xingamentos
e cheguei por um tempo a construir uma barreira onde fingia que tudo era
exagero porque era mais fácil esconder. Hoje quebrei muitas pedras, mas
continuo sendo a típica pessoa mediana. Só tenho de especial o que todos nós
temos, um amor, que é gigantesco, que é louco pelo mundo, pelos presentes da vida, e ele
vai ter que ser o suficiente para que acreditem em mim porque não tenho nada
além. Acho que justamente porque nunca me destaquei, sempre acreditei que não é
preciso nenhum plus para ser feliz. Mas é fundamental ter alguém que acredite e
que te ajuda a não ser engolido por um sistema que só privilegia os talentosos.
E isso é o que eu tenho pra oferecer pro mundo e no final compensa muito, mesmo
sem aplausos ou gritos de uma multidão. É quando me torno de verdade a pessoa
mais feliz do mundo.
Talvez por tudo isso, depois que lembrei do que tinha esquecido, eu
comecei a rir. Gargalhar na verdade, loucamente, ainda deitada na cama, no chão. Levantei, olhei para o sol e
agradeci pelo meu carnaval. Engraçado como às vezes é necessário voltar pra
casa porque sobra tempo pra entender todo o período que você passou fora, pra
pensar em tudo que não dava tempo. Ainda dói e ainda não voltei a sentir os
laços apertados, ainda me sinto com frágeis conexões. Mas minha base é forte, e
o meu santo ainda mais. Faço bagunças, me atrapalho, mas não tenho preguiça
para ajudar um igual a se levantar. E é assim que um dia vou acertar mais a
tecla e talvez no ano que vem eu esteja mais conectada para voltar a pular o Carnaval e acreditando realmente na alegria dele.
Que texto lindo e intenso. Vejo toda essa verdade e, como sempre, passamos por processos muito parecidos.
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